ICMS – Elementos estranhos na base de cálculo

Artigos   |  06/07/2020

ICMS – Elementos estranhos na base de cálculo

Base de cálculo do ICMS-Energia elétrica


Questões relativas à incidência sobre TUST, TUSD e demanda contratada

A Constituição Federal de 1988, inovando a conceituação tradicional de mercadoria, definiu energia elétrica como um bem corpóreo passível de circulação ensejadora do ICMS.

Encontra-se previsto pelo art. 155, II, da Constituição Federal, dentro do campo de competência dos Estados e do Distrito Federal. Confira-se:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(…)

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

(…)

§ 3º À exceção dos impostos de que tratam o inciso II do caput deste artigo e o art. 153, I e II, nenhum outro imposto poderá incidir sobre operações relativas a energia elétrica, serviços de telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e minerais do País

Logo, na forma prevista pela Constituição Federal (art. 155, II c.c. § 3º) e pela Lei Complementar nº 87/96, chamada Lei Kandir, a energia elétrica só pode ser tributada pelo ICMS a título de mercadoria.

O fato gerador do ICMS é a saída do estabelecimento do contribuinte, sendo devido o imposto somente com a entrega ao seu destinatário, quando ocorre a efetiva transferência da posse ou propriedade. O efetivo consumo, pelo destinatário final, é imprescindível para a caracterização do fato gerador do tributo.

É neste sentido a Lei Kandir:

Art. 12. Considera-se ocorrido o fato gerador do imposto no momento:

I – da saída de mercadoria de estabelecimento de contribuinte, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular;

(…)

III – da transmissão a terceiro de mercadoria depositada em armazém geral ou em depósito fechado, no Estado do transmitente;

IV – da transmissão de propriedade de mercadoria, ou de título que a represente, quando a mercadoria não tiver transitado pelo estabelecimento transmitente;

(…)

Art. 13. A base de cálculo do imposto é:

I – na saída de mercadoria prevista nos incisos I, III e IV do art. 12, o valor da operação;

Ocorre que o Estado, na contramão da legislação de regência, acaba por tributar a transmissão e a distribuição, que correspondem etapas necessárias para o fornecimento da energia elétrica, ou seja, atividades-meio que não podem ser tratadas como circulação de mercadoria.

De acordo com a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, “as geradoras produzem a energia, as transmissoras a transportam do ponto de geração até os centros consumidores, de onde as distribuidoras a levam até a casa dos cidadãos”.

Inconteste, portanto, a possibilidade e a efetiva separação entre as fases do procedimento de fornecimento de energia elétrica.

Uma vez que o ICMS somente pode ser cobrado diante da efetiva entrega da energia ao consumidor, a incidência do imposto sobre as tarifas que remuneram a transmissão e a distribuição da energia elétrica contraria a Constituição Federal e a Lei Kandir.

Neste sentido, a lavra do ilustre jurista Roque Carrazza, in verbis:

“Evidentemente, o valor da operação de fornecimento de energia elétrica é o realmente praticado entre o fornecedor e o consumidor. De fato, na base de cálculo do tributo não devem ser inseridos elementos estranhos (v.g. ‘tarifas de fio’) à relação jurídica entre o concessionário e o consumidor desta mercadoria. 

Se a base de cálculo do ICMS levar em conta elementos estranhos à operação mercantil realizada, ocorrerá, por sem dúvida, descaracterização do tributo – fenômeno que nossa ordem constitucional reprova.” 

(CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 16 ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 322, grifos no original).

Com efeito, o princípio da reserva legal, insculpido no inciso I do art. 150 da Carta Magna, determina que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios exigir ou aumentar tributos sem lei que o estabeleça.

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;

Atento à situação, o Superior Tribunal de Justiça – STJ editou as Súmulas 391 e 166, in verbis:

Súmula 391 – O ICMS incide sobre o valor da tarifa de energia elétrica correspondente à demanda de potência efetivamente utilizada. 

(Súmula 391, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 23/09/2009, DJe 07/10/2009)

Súmula 166 – Não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte. 

(Súmula 166, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/08/1996, DJ 23/08/1996)

O excerto do julgamento do Recurso Especial 222.810/MG, precedente da Súmula 391 é extremamente didático. Confira-se:

TRIBUTÁRIO. ICMS. ENERGIA ELÉTRICA. CONTRATO DE DEMANDA RESERVADA DE POTÊNCIA. FATO GERADOR. INCIDÊNCIA.

1 – O valor da operação, que é a base de cálculo lógica e típica no ICMS, como era no regime de ICM, terá de consistir, na hipótese de energia elétrica, no valor da operação de que decorrer a entrega do produto ao consumidor (Gilberto Ulhôa Canto).

2 – O ICMS deve incidir sobre o valor da energia elétrica efetivamente consumida, isto é, a que for entregue ao consumidor, a que tenha saído da linha de transmissão e entrado no estabelecimento da empresa.

3 – O ICMS não é imposto incidente sobre tráfico jurídico, não sendo cobrado, por não haver incidência, pelo fato de celebração de contratos.

4 – Não há hipótese de incidência do ICMS sobre o valor do contrato referente a garantir demanda reservada de potência.

5 – A só formalização desse tipo de contrato de compra ou fornecimento futuro de energia elétrica não caracteriza circulação de mercadoria.

6 – A garantia de potência e de demanda, no caso de energia elétrica, não é fato gerador do ICMS. Este só incide quando, concretamente, a energia for fornecida e utilizada, tomando-se por base de cálculo o valor pago em decorrência do consumo apurado.

7 – Recurso conhecido e provido por maioria.

8 – Voto vencido no sentido de que o ICMS deve incidir sobre o valor do contrato firmado que garantiu a “demanda reservada de potência”, sem ser considerado o total consumido.

(REsp 222.810/MG, Rel. Ministro MILTON LUIZ PEREIRA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/03/2000, DJ 15/05/2000, p. 135)

A questão chegou ao Supremo Tribunal Federal que, em julgamento de abril de 2020, fixou a seguinte tese de repercussão geral:

Tema 176: A demanda de potência elétrica não é passível, por si só, de tributação via ICMS, porquanto somente integram a base de cálculo desse imposto os valores referentes àquelas operações em que haja efetivo consumo de energia elétrica pelo consumidor.

(STF, Plenário, Sessão Virtual de 17.4.2020 a 24.4.2020)

Merecem destaque os seguintes trechos do voto do Ilustre Ministro Relator Edson Fachin, in verbis:

“A disponibilização de potência elétrica gera custos à concessionária, e por isso deve ser integralmente paga. No entanto, não corresponde ao consumo de energia elétrica, que é o que efetivamente foi utilizado com a ligação de equipamentos e máquinas, podendo ser maior ou menor do que o que foi disponibilizado. 

Atualmente, a definição normativa de demanda contratada se haure da Resolução ANEEL 414/2010, especificamente de seu artigo 2º, XXI, in verbis: “demanda contratada: demanda de potência ativa a ser obrigatória e continuamente disponibilizada pela distribuidora, no ponto de entrega, conforme valor e período de vigência fixados em contrato, e que deve ser integralmente paga, seja ou não utilizada durante o período de faturamento, expressa em quilowatts (kW);”. 

Para isso, parece-nos percuciente a distinção realizada entre demanda de potência contratada e demanda de potência efetivamente utilizada pelo e. Relator Ministro Teori Zavascki do recurso especial precitado, nos seguintes termos: 

“É importante atentar para a definição de demanda contratada: é a demanda de potência ativa, expressa em quilowatts (kW), a ser “disponibilizada pela concessionária” ao consumidor, “conforme valor e período de vigência fixados no contrato de fornecimento”, que pode ou não ser “utilizada durante o período de faturamento”. Demanda de potência contratada, bem se vê, não é demanda utilizada, e, se não representa demanda de potência elétrica efetivamente utilizada, não representa energia gerada e muito menos que tenha circulado.

A simples disponibilização da potência elétrica no ponto de entrega, ainda que gere custos com investimentos e prestação de serviços para a concessionária, pode constituir – e efetivamente constitui – fato gerador da tarifa do serviço público de energia , mas certamente não constitui fato gerador do ICMS, que tem como pressuposto indispensável a efetiva geração de energia, sem a qual não há circulação.

Ora, é fenômeno da realidade física, já se disse, que não há geração de energia elétrica sem que haja consumo. Daí o acerto, mais uma vez, da jurisprudência do STJ: a demanda de potência de energia simplesmente contratada ou mesmo disponibilizada, mas ainda não utilizada, não está sujeita à incidência de ICMS, porque o contrato ou a disponibilização, por si sós, não constituem o fato gerador desse tributo.

Entretanto, isso não significa dizer que o ICMS jamais pode incidir sobre a tarifa correspondente à demanda de potência elétrica. Tal conclusão não está autorizada pela jurisprudência do Tribunal. O que a jurisprudência afirma é que nas operações de energia elétrica o fato gerador do ICMS não é a simples contratação da energia, mas sim o seu efetivo consumo. Por isso se afirma que, relativamente à demanda de potência, a sua simples contratação não constitui fato gerador do imposto. Não se nega, todavia, que a potência elétrica efetivamente utilizada seja fenômeno incompatível ou estranho ao referido fato gerador.

Pelo contrário, as mesmas premissas teóricas que orientam a jurisprudência do STJ sobre o contrato de demanda, levam à conclusão (retirada no mínimo a contrario sensu) de que a potência elétrica, quando efetivamente utilizada, é parte integrante da operação de energia elétrica e, como tal, compõe sim o seu fato gerador” (grifo nosso).

Chega-se, portanto, agora sob a ótica constitucional, à conclusão de que a demanda de potência elétrica não é passível, per se, de tributação via ICMS, a despeito de sua legítima cobrança tarifária pela prestação de serviço de energia elétrica. Isso porque não se depreende o consumo de energia somente pela disponibilização de demanda de potência ativa. Na espécie, há clara distinção entre a política tarifária do setor elétrico e a delimitação da regra-matriz do imposto em comento.” (grifos no original)

O julgamento, não obstante trata de questão relativa à demanda contratada, reitera a jurisprudência pacífica nas Cortes Superiores de que o ICMS somente deve incidir sobre a energia elétrica entregue ao consumidor final, afastando da base de cálculo a incidência sobre os custos de distribuição de transmissão.

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